20 juin 2018

Mais uma vez sobre Pagu e seu romance proletário

Parque industrial de Mara Lobo,
aliás Patrícia Galvão, aliás Pagu
por Paulo Ferraz

Por um acaso alfarrábico, li às vésperas do Primeiro de Maio o romance Parque Industrial da Pagu, publicado em 1933, sob o pseudônimo de Mara Lobo, e que não mereceu então um debate crítico mais profundo, salvo algumas notas na imprensa, entre elas uma publicada em 23.01.1933 no Jornal do Brasil pelo acadêmico João Ribeiro que a saudava e enaltecia sua estreia com “um livro de grande modernidade pelo assunto e pela filosofia”, considerando-o um “panfleto admirável de observações e probabilidades”. Com o passar do tempo acabou praticamente esquecido com algumas escassas referências acadêmicas em geral relacionadas à atividade política na literatura, por vezes em comparação aos livros de Jorge Amado do mesmo período.

O romance de Pagu talvez não chamasse tanta atenção para exigência estética da burguesia modernista, já que a narrativa é sempre direta, com cenas curtas e personagens um tanto esquemáticas que cumprem papeis específicos, prestando-se a cumprir certa sina dentro da estrutura de opressão social na qual a narrativa se insere. Mas não se trata de “exigência burguesa”, o livro foi escrito para operários suburbanos da década de 1930, sua função era a de fazer da literatura uma atividade comprometida, a qual chamamos pejorativamente de panfletária. Mas aparentemente seu panfleto desagradou até os comunistas, já que há pouco Marx (e quando há o didatismo por meio de exemplos, de fato, prejudica a forma) para muita realidade pós-escravista em nosso parque industrial que mais parecia uma fazenda com teares e chaminés. A despeito de eventuais dúvidas quanto a sua função política, Geraldo Ferraz não poupou em classificar a obra como “um romance de sentido revolucionário. Para fazer isso, a autora selecionou alguns elementos e realizou numa forma sempre interessante, um trabalho notável, na sequência episódica da narrativa. (...) Não é mais literatura sambinha de Mário de Andrade Conservatório. Bobagem de Coelho Neto pró prêmio Nobel. Xaropes ingleses de Machado de Assis. É a condição humana em que se enquadram as relações do capital, na luta em perspectiva” (Correio de São Paulo, 7.01.1933)

Ainda assim, em meio a um texto aparentemente didático, diria que há um eco da poética oswaldiana, as frases curtas têm como centro a ação ou um elemento essencial do ambiente, que funciona como síntese, sem se importar tanto com a descrição. Em favor de uma certa velocidade, Pagu emprega cortes abruptos de uma cena para outra, às vezes pequenos quadros justapostos, que dão um ritmo da narrativa muitas vezes próximos ao de um poema em prosa, tanto que na seleção de sua obra que Augusto de Campos preparou, ele pinçou passagens que se prestam justamente a essa função. Mas há algo que nem em Oswald se encontra, a violência física também se reproduz numa violência vocabular que registra as ofensas, o palavrão, a falta de pudores com que as personagens falam de seus corpos ou mesmo do sexo, que não é insinuado, sugerido, está presente na forma consentida ou não.

“— Eu só me caso com trabalhador.
— Sai azar! Pra pobre basta eu. Passar a vida inteira nesta merda” (...)
“Que importa morrer de bala em vez de morrer de fome!” (...)
“Peitos propositais acendem os bicos sexualizados” (...)
“Os professores penetram nas classes depois de falar muito sobre crise, Sovadinhos. Recalcados. No meio de tanta menina coxuda e bonita!” (...)
“Todas as meninas bonitas estão sendo bolinadas.” (...)
“Sabe? Não quero saber de uma puta!” (...)
“Por que nascera mulata? é tão bonita. Quando se pinta então. O diabo é a cor. (...) Por que os pretos têm filhos?” (...)
“— Abortar? Matar o meu filhinho?” (...)
“Psiu! Benzinho! Vem cá! Te dou o botão... Aumenta pouco a pouco o vocabulário erótico” (...)
“Eu prefiro a corcunda porque ninguém quer. Essa ao menos é limpa!” (...)
“— Não chegue perto. Te pego doença. Se você visse! Minha boceta é um buraco!
— Ora boba! Eu também estou podre! Vem comer comigo! Xii! Caraio de boia! Tenho vontade de meter essa porcaria no queixo do carcereiro. Todo dia esse macarrão fedido. Filho da puta!”

Parque Industrial é um romance proletário, sem dúvida, entretanto é preciso adicionar uma outra orientação do discurso que lhe é inerente, é um romance proletário e feminista, e esse diferencial é o mais significativo de sua obra, basta voltar às frases citadas acima, suas personagens são em geral as jovens da periferia, moradoras de cortiços na Penha, de vilas operárias da Zona Leste, trabalhadoras cotidianamente humilhadas nas fábricas de tecidos do Brás ou costureiras da Barão de Itapetinga. Algumas notas contemporâneas refutavam justamente os desvios vocabulares, que fazia do romance impróprio para alguns leitores, e outros chegaram a considerá-lo pornográfico. Murilo Mendes ao resenhar o livro para o Boletim de Ariel, chegou a pôr em dúvidas as intenções revolucionárias de Pagu, chamando o livro de “reportagem impressionista” de uma autora pequeno burguesa, para quem a revolução seria resolver a questão sexual... Embora fosse uma forma de diminuir sua proposta, a leitura de seu romance deixa clara que a revolução haveria de passar por uma emancipação feminina. Por serem mulheres (algumas mulatas, é importante que se diga), as relações de trabalho são ainda mais violentas que as prescritas pelo manual do Partido, que seguramente não dizia nada sobre assédio sexual, violência doméstica, abandono, aborto, prostituição, crianças pobres fora das escolas, trabalhadores analfabetos. Talvez aí esteja a importância dessa obra, é uma narrativa com as “cores” do Brasil colonial em pleno século XX, com desvios sociais que só podem existir onde sequer há a noção de coletividade, agravando as relações hierárquicas. Em mais de um momento a palavra “escravo” aparece em substituição a “trabalhador”, o que seguramente evidencia um modo não dogmático de ver as relações de classe no país e as formas de combatê-las.

A prosa dos anos 1930 tem características sociais e políticas claras, mas na sua quase totalidade as obras que ilustram o período são as ambientadas no sertão nordestino, onde a marca da opressão social se manifestava na seca, no engenho, no coronel, um Brasil “regional” que parecia então talvez um fóssil. Já o romance urbano, com antecedentes num Machado de Assis ou num Lima Barreto, que tivesse operários e pobres como protagonistas não mereceu a mesma atenção da crítica, tal como mereceu da polícia política do Getulio Vargas, e não falo só no Parque Industrial, penso em O Gororoba, de Lauro Palhano, também ignorado em sua importância para uma narrativa popular no Brasil. Pagu era uma militante que não encontra similar entre os intelectuais nacionais do modernismo, alguém capaz de enfrentar fisicamente — e armada segundo os relatos — um bando de alunos de direito do Largo de São Francisco que queriam empastelar a redação de O Homem do Povo, tendo pago por isso o alto preço do encarceramento e do ostracismo das editoras e seus contemporâneos. Um perfil da época, descreve-a como “o tipo mais interessante de mulher que o Brasil produziu. Bonita, inteligente, livre de preconceitos (...). Com aquele gênio e aquelas manias, Pagu forçosamente deveria ser comunista. (...) Somente nós, parasitas de sangue de barata seremos capaz de ver o que Pagu viu e ficar calados. Ela não. Ela viu e falou. Gritou. Esbravejou. Bateu-se como uma leoa pela causa. Ela que podia, com sua beleza, conquistar milionários, preferiu conquistar os miseráveis. Ela que poderia viver no luxo, preferiu viver no simples. Que podia andar de sedas, anda em modesto vestido de zephir. Pagu fuma. Anda como homem, de passo firme. E diz os nomes feios que os homens dizem. É um tipo original, em suma, essa Pagu.” (O Malho, 15.04.1933) Em Parque Industrial, ela não se exime de retratar polícias infiltrados, operários dedos-duros e poetas “lacaios” dos capitalistas ilustrados que financiavam a modernização em São Paulo (“como não hei de ser comunista se sou moderna?” diz uma caricata D. Finoca, velha protetora das artes novas, que bem poderia ser uma D. Olivia Guedes Penteado), um único personagem burguês que acaba se convertendo à causa operária, capaz de abandonar o Hotel Esplanada e vestir as roupas do trabalhador, acaba sendo acusado de divisionista e trotskista, não merecendo nem mesmo a compreensão da militante que o acolheu em sua cama.

Depois dos anos 1940, depois de se desligar do Partido Comunista, Pagu seguiu sua militância privada, escrevendo e traduzindo, até morrer praticamente esquecida em 1962, tendo que esperar por quase duas décadas que um Augusto de Campos a resgatasse em todo o seu valor, por sinal, Augusto chama Parque Industrial de “a última pérola modernista engastada na pedreira do nascente romance social dos anos 30, do qual é um excêntrico e atrevido precursor”. Mas ainda segue pouco reconhecida em sua importância no processo de modernização da literatura brasileira e dos próprios intelectuais do século XX. Nesse momento em que mais uma vez a burguesia parece dar as costas ao país, voltarmos ao exemplo Parque Industrial talvez nos ajudasse a entender o papel dos escritores nesse cenário, ainda mais hoje quando além dos escritores egressos da burguesia, cada dia mais surgem aqueles nascidos nas periferias que Pagu descreveu e que desde então seguem praticamente ausentes do imaginário literário nacional.

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Nota: Paulo Ferraz participará no debate “Entre golpes: mulheres e política na literatura brasileira, de 1933 a 2018”, com Ana Rüsche, Augusto de Campos (a confirmar) e Marília Moschkovich (mediação), promovido pela editora Linha a Linha na ocasião do lançamento da nova edição de Parque Industrial, dia 23/06 às 16h na Tapera Taperá, Av. São Luís, 187 – 2° andar, loja 29 – República – São Paulo.

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