Parque
industrial
de Mara Lobo,
aliás Patrícia Galvão, aliás Pagu
por
Paulo Ferraz
Por um acaso alfarrábico,
li às vésperas do Primeiro de Maio o romance Parque Industrial da Pagu, publicado em 1933, sob o pseudônimo de
Mara Lobo, e que não mereceu então um debate crítico mais profundo, salvo
algumas notas na imprensa, entre elas uma publicada em 23.01.1933 no Jornal do Brasil pelo acadêmico João
Ribeiro que a saudava e enaltecia sua estreia com “um livro de grande
modernidade pelo assunto e pela filosofia”, considerando-o um “panfleto
admirável de observações e probabilidades”. Com o passar do tempo acabou
praticamente esquecido com algumas escassas referências acadêmicas em geral
relacionadas à atividade política na literatura, por vezes em comparação aos
livros de Jorge Amado do mesmo período.
O romance de Pagu talvez
não chamasse tanta atenção para exigência estética da burguesia modernista, já
que a narrativa é sempre direta, com cenas curtas e personagens um tanto
esquemáticas que cumprem papeis específicos, prestando-se a cumprir certa sina dentro
da estrutura de opressão social na qual a narrativa se insere. Mas não se trata
de “exigência burguesa”, o livro foi escrito para operários suburbanos da
década de 1930, sua função era a de fazer da literatura uma atividade
comprometida, a qual chamamos pejorativamente de panfletária. Mas aparentemente
seu panfleto desagradou até os comunistas, já que há pouco Marx (e quando há o
didatismo por meio de exemplos, de fato, prejudica a forma) para muita
realidade pós-escravista em nosso parque industrial que mais parecia uma
fazenda com teares e chaminés. A despeito de eventuais dúvidas quanto a sua
função política, Geraldo Ferraz não poupou em classificar a obra como “um
romance de sentido revolucionário. Para fazer isso, a autora selecionou alguns
elementos e realizou numa forma sempre interessante, um trabalho notável, na
sequência episódica da narrativa. (...) Não é mais literatura sambinha de Mário
de Andrade Conservatório. Bobagem de Coelho Neto pró prêmio Nobel. Xaropes
ingleses de Machado de Assis. É a condição humana em que se enquadram as
relações do capital, na luta em perspectiva” (Correio de São Paulo, 7.01.1933)
Ainda assim, em meio a um
texto aparentemente didático, diria que há um eco da poética oswaldiana, as
frases curtas têm como centro a ação ou um elemento essencial do ambiente, que
funciona como síntese, sem se importar tanto com a descrição. Em favor de uma
certa velocidade, Pagu emprega cortes abruptos de uma cena para outra, às vezes
pequenos quadros justapostos, que dão um ritmo da narrativa muitas vezes
próximos ao de um poema em prosa, tanto que na seleção de sua obra que Augusto
de Campos preparou, ele pinçou passagens que se prestam justamente a essa
função. Mas há algo que nem em Oswald se encontra, a violência física também se
reproduz numa violência vocabular que registra as ofensas, o palavrão, a falta
de pudores com que as personagens falam de seus corpos ou mesmo do sexo, que
não é insinuado, sugerido, está presente na forma consentida ou não.
“— Eu só me caso com
trabalhador.
— Sai azar! Pra pobre
basta eu. Passar a vida inteira nesta merda” (...)
“Que importa morrer de bala
em vez de morrer de fome!” (...)
“Peitos propositais
acendem os bicos sexualizados” (...)
“Os professores penetram
nas classes depois de falar muito sobre crise, Sovadinhos. Recalcados. No meio
de tanta menina coxuda e bonita!” (...)
“Todas as meninas bonitas
estão sendo bolinadas.” (...)
“Sabe? Não quero saber de
uma puta!” (...)
“Por que nascera mulata? é
tão bonita. Quando se pinta então. O diabo é a cor. (...) Por que os pretos têm
filhos?” (...)
“— Abortar? Matar o meu
filhinho?” (...)
“Psiu! Benzinho! Vem cá!
Te dou o botão... Aumenta pouco a pouco o vocabulário erótico” (...)
“Eu prefiro a corcunda
porque ninguém quer. Essa ao menos é limpa!” (...)
“— Não chegue perto. Te
pego doença. Se você visse! Minha boceta é um buraco!
— Ora boba! Eu também estou
podre! Vem comer comigo! Xii! Caraio de boia! Tenho vontade de meter essa
porcaria no queixo do carcereiro. Todo dia esse macarrão fedido. Filho da puta!”
Parque
Industrial
é um romance proletário, sem dúvida, entretanto é preciso adicionar uma outra orientação
do discurso que lhe é inerente, é um romance proletário e feminista, e esse
diferencial é o mais significativo de sua obra, basta voltar às frases citadas
acima, suas personagens são em geral as jovens da periferia, moradoras de
cortiços na Penha, de vilas operárias da Zona Leste, trabalhadoras
cotidianamente humilhadas nas fábricas de tecidos do Brás ou costureiras da
Barão de Itapetinga. Algumas notas contemporâneas refutavam justamente os
desvios vocabulares, que fazia do romance impróprio para alguns leitores, e
outros chegaram a considerá-lo pornográfico. Murilo Mendes ao resenhar o livro
para o Boletim de Ariel, chegou a pôr
em dúvidas as intenções revolucionárias de Pagu, chamando o livro de
“reportagem impressionista” de uma autora pequeno burguesa, para quem a
revolução seria resolver a questão sexual... Embora fosse uma forma de diminuir
sua proposta, a leitura de seu romance deixa clara que a revolução haveria de passar
por uma emancipação feminina. Por serem mulheres (algumas mulatas, é importante
que se diga), as relações de trabalho são ainda mais violentas que as
prescritas pelo manual do Partido, que seguramente não dizia nada sobre assédio
sexual, violência doméstica, abandono, aborto, prostituição, crianças pobres
fora das escolas, trabalhadores analfabetos. Talvez aí esteja a importância
dessa obra, é uma narrativa com as “cores” do Brasil colonial em pleno
século XX, com desvios sociais que só podem existir onde sequer há a noção
de coletividade, agravando as relações hierárquicas. Em mais de um momento a
palavra “escravo” aparece em substituição a “trabalhador”, o que seguramente
evidencia um modo não dogmático de ver as relações de classe no país e as
formas de combatê-las.
A prosa dos anos 1930 tem características
sociais e políticas claras, mas na sua quase totalidade as obras que ilustram o
período são as ambientadas no sertão nordestino, onde a marca da opressão
social se manifestava na seca, no engenho, no coronel, um Brasil “regional” que
parecia então talvez um fóssil. Já o romance urbano, com antecedentes num
Machado de Assis ou num Lima Barreto, que tivesse operários e pobres como
protagonistas não mereceu a mesma atenção da crítica, tal como mereceu da
polícia política do Getulio Vargas, e não falo só no Parque Industrial, penso em O Gororoba,
de Lauro Palhano, também ignorado em sua importância para uma narrativa popular
no Brasil. Pagu era uma militante que não encontra similar entre os
intelectuais nacionais do modernismo, alguém capaz de enfrentar fisicamente — e
armada segundo os relatos — um bando de alunos de direito do Largo de São
Francisco que queriam empastelar a redação de O Homem do Povo, tendo pago por isso o alto preço do
encarceramento e do ostracismo das editoras e seus contemporâneos. Um perfil da
época, descreve-a como “o tipo mais interessante de mulher que o Brasil
produziu. Bonita, inteligente, livre de preconceitos (...). Com aquele gênio e
aquelas manias, Pagu forçosamente deveria ser comunista. (...) Somente nós,
parasitas de sangue de barata seremos capaz de ver o que Pagu viu e ficar
calados. Ela não. Ela viu e falou. Gritou. Esbravejou. Bateu-se como uma leoa
pela causa. Ela que podia, com sua beleza, conquistar milionários, preferiu
conquistar os miseráveis. Ela que poderia viver no luxo, preferiu viver no
simples. Que podia andar de sedas, anda em modesto vestido de zephir. Pagu
fuma. Anda como homem, de passo firme. E diz os nomes feios que os homens dizem.
É um tipo original, em suma, essa Pagu.” (O Malho,
15.04.1933) Em Parque Industrial, ela
não se exime de retratar polícias infiltrados, operários dedos-duros e poetas “lacaios”
dos capitalistas ilustrados que financiavam a modernização em São Paulo (“como
não hei de ser comunista se sou moderna?” diz uma caricata D. Finoca,
velha protetora das artes novas, que bem poderia ser uma D. Olivia Guedes
Penteado), um único personagem burguês que acaba se convertendo à causa
operária, capaz de abandonar o Hotel Esplanada e vestir as roupas do
trabalhador, acaba sendo acusado de divisionista e trotskista, não merecendo
nem mesmo a compreensão da militante que o acolheu em sua cama.
Depois dos anos 1940,
depois de se desligar do Partido Comunista, Pagu seguiu sua militância privada,
escrevendo e traduzindo, até morrer praticamente esquecida em 1962, tendo que
esperar por quase duas décadas que um Augusto de Campos a resgatasse em todo o
seu valor, por sinal, Augusto chama Parque
Industrial de “a última pérola modernista engastada na pedreira do nascente
romance social dos anos 30, do qual é um excêntrico e atrevido precursor”. Mas
ainda segue pouco reconhecida em sua importância no processo de modernização da
literatura brasileira e dos próprios intelectuais do século XX. Nesse
momento em que mais uma vez a burguesia parece dar as costas ao país, voltarmos
ao exemplo Parque Industrial talvez
nos ajudasse a entender o papel dos escritores nesse cenário, ainda mais hoje
quando além dos escritores egressos da burguesia, cada dia mais surgem aqueles
nascidos nas periferias que Pagu descreveu e que desde então seguem
praticamente ausentes do imaginário literário nacional.
*
Nota: Paulo Ferraz
participará no debate “Entre golpes: mulheres e política na literatura
brasileira, de 1933 a 2018”, com Ana Rüsche, Augusto de Campos (a confirmar) e
Marília Moschkovich (mediação), promovido pela editora Linha a Linha na ocasião
do lançamento da nova edição de Parque
Industrial, dia 23/06 às 16h na Tapera Taperá, Av. São Luís, 187 – 2° andar,
loja 29 – República – São Paulo.
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire