« Na maré alta da
ultima etapa »
Escolho
para titulo desta seção de literatura hoje uma frase solta de Serafim Ponte [Grande], o romance de
Osvaldo de Andrade que a estas horas já deve estar á venda nas livrarias. É que
a publicação dêste livro constitue um acontecimento notavel, embora esteja um
tanto desambientada a concepção, do mais completo romance que as letras
modernistas produziram no pais. E assim esta seção fica dedicada ao
aparecimento de Serafim Ponte [Grande].
A frase colocada no alto destas colunas é a definição da situação atual do
mundo, dentro da qual e em conflito com a qual se coloca Serafim, o pequeno
burguês brasileiro, tipico, tão humano como dom Quixote, representativo como
qualquer um desses tipos da fição, que monopolizaram o simbolo da duvida de
Hamlet, do romantismo no joven Werter e tão real como a Bovari do naturalismo
francês. « Na maré alta da ultima étapa » é verdadeiramente a
tradução literaria da definição materialista, desse « traço carateristico
da nossa época », ultima étapa do capitalismo…
Produto
de uma fase de debate da nossa literatura, o livro de Osvald do Andrade,
entretanto, escapa completamente aos moldes transitórios, artificiais, das
obras produzidas durante as agitações renovadoras, para se situar num periodo
de amadurecimento, que é o periodo de estratificação do proprio escritor,
fragmentário em Memorias sentimentais de
João Miramar, e nas poesias indecisas de Páu Brasil.
A
definição materialista que me vem preocupando desde o titulo, é amostra de
atitude diferente agora mantida pelo romancista. Faz parte do prefácio, escrito
neste ano, como profissão de fé que o autor achou necessária para justificar a
publicação de Serafim.
Em
1928 se estava atravessando a primeira fáse da antropofagia, quando ela era
considerada atitude inteletual sem divergencias, dentro da qual cabiam desde o
futil escritor Antonio França Junior de Alcantara Machado, o poetinha Guilherme
de Almeida e o autor de Macunaima que
só entrára no brinquedo, como me confessou, para manter o « aplomb* »…
Lógo porém se processava a definição de certas tendencias mais decisivas e se
dava a desagregação. Quando Raul Bopp e Osvald de Andrade me propuzeram a
fatura da « Pagina de antropofagia », a desagregação daqueles
elementos já se déra, na heterogeneidade evidente, diante da intransigencia dos
antropofagos que não papavam hostia nas missas de Santa Cecilia, e deixavam de
lado os « salões da nossa melhor sociedade ». Pra diante os
antropofagos dando de fazer propaganda de algumas idéas tidas como avançadas,
tais como o exame pré-nupcial, a educação sexual e outras coisas assim, a
direcção do Diario de S. Paulo, com
o gerente Orlandinho Dantas, á frente, poz na rua o grupo que perpetrava, para
goso dos pais de familia, a escandalosa literatura semanal da corrente
antropofagica. O ciclo assim encerrado, em escaramuças que tiveram duração de
poucos mêses, deu entretanto alguns livros e exarcebou maiores pesquizas. Freud
fôra posto de lado, em contáto com Jung, Politzer e Adler. Preocupavam-nos mais
os teoristas da Gelsttat e da behaviour. Serafim
é bem dêsse periodo, não importando que fôsse começado antes, pois me recordo
de capitulos inteiros publicados ai em 1926 no finado Jornal do Comércio, onde Osvald escrevia a « feira das quintas ».
Só
então Serafim ganha ultima forma. Lembro-me
que ai o escritor destruiu a pagina da dedicatória, a « ilustre dama
paulista ».
Logo
de frente, Macunaima, de Mário de
Andrade, se torna uma obra sem interesse para o leitor de hoje. Os golpes
militares nos aguçaram mais as sensações e não é qualquer pastiche de folclore
tomado dos « nhengatu’s » que nos vá impressionar agora. Mas Serafim é diferente. É um sujeito jogado
na maré alta da ultima etapa, que vive e se agita entre as contradições
econômicas da grande terra pobre, recalcado e imoral, deflagrando a sua
existencia em moles aventuras sexuais, perturbado por um passado sofredor e
praticando ofensivas vibrantes em busca de solução para o seu conflito interior
de incontentado.
Toda
uma antologia dessas angustias que cruciam a pequena burguesia da terra do
café, classe média oscilante e depositária das instabilidades morais e
materiais da nacionalidade informe, passa como um filme minucioso aos olhos de
quem lê. A camera lenta descreve em requintes de estilo « moderno » a
noite de amor em frente ao mar, primeiro desabafo Serafim gosando, e nos dá as
descrições adjetivosas e transparentes da viagem ao Oriente e a visita ao Santo
Sepulcro, onde um guarda informativo esclarece Serafim que Cristo nasceu na
Baia… A revolução de 1924 tem paginas de estilo heroico, e o casamento de
Serafim á vasado num « schetch » de efeito escandaloso, como o áto
teatral de Serafim perante a Justiça por causa do cachorrinho Pompeque.
As
paginas de bordo têm analogia com as do « Terremoto Doroteu », se
dando nelas a exteriorização da vida tortuosa e torturada de Serafim, que o
romance de Dorotéa nos mostra em toda a extensão de seus tumultos provocados
pelas contingencias domesticas, povoadas de pontos de referencia cujos pólos se
situam na mulher com quem casou, e na outra que aparece, a « unica
declamadora diseuse com temperamento que possuimos ».
Para
terminar, eu acredito que não teremos tão proximamente em nossa literatura um
recorde igual de invenção e realização do que êste que Osvald conseguiu
realizar, desmandibulando os nossos literatos modernos, e a corja sem nome dos
coelhosnetos que ainda pulula pelo pais despoliciado. É o documento do estado
atual da classe média, no que poderia haver de mais notavel como literatura
moderna do Brasil tambem em sua ultima etapa. Daqui pra diante, a historia será
outra.
Continuaremos
a traçar nossas « diretrizes » de que nos afastámos para prestar a
atenção que merece o fabuloso humorista que creou a figura caricatural e
realista deste Serafim satirizado. O boêmio-burguês se vingou da classe média
no livro, e se voltou numa atitude perfeitamente logica para o proletariado, no
prefacio sincéro, que relata a evolução operada nos cinco anos transcorridos da
ofensiva antropofagica á adesão conciente ao marxismo e suas consequências.
Geraldo Ferraz.
Texte
original (graphie non actualisée) tiré de :
O Homem Livre, São Paulo
1e
année, n° 8, 17 juillet 1933
rubrique
« Literatura », p. 3
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